ATOS 2025
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"É preciso cuidado e respeito com a comunidade para trabalhar com ela"
Há dois anos que o ATOS anda a semear projetos de participação cultural em comunidades de todo o país. Os municípios de Lamego, Loulé, São João da Madeira e Funchal falam-nos dos frutos desta parceria do Teatro Nacional D. Maria II com a Fundação Gulbenkian.
©Filipe Ferreira TNDMII
A caminhar para o seu terceiro ano, o ATOS continua a promover a arte participativa como motor de transformação cívica, fomentando o diálogo entre estruturas artísticas e seis territórios – S. João da Madeira, Lamego, Loulé, Évora, Funchal e Ponta Delgada. Um dos polos mais importantes é a relação com as câmaras municipais e os equipamentos culturais destes territórios, que disponibilizam as equipas para aprender novos processos de escuta e participação das comunidades envolventes, através de projetos artísticos, ações de formação e a organização de fóruns ou conferências.
Implementar processos participativos e cocriativos na cultura tem permitido construir redes entre pessoas, artistas e associações, mas também traz alguns desafios – como a falta de tempo e recursos, a dificuldade em garantir uma comunicação eficaz, a capacitação das equipas e o acompanhamento contínuo para alcançar um impacto duradouro. Neste artigo, falamos com os responsáveis de quatro municípios envolvidos sobre algumas das principais lições a retirar da sua experiência.
Não ter medo da mudança
Um município pequeno (tem entre 17 e 18 mil residentes) e um pouco disperso por 19 freguesias, Lamego é "uma zona em que o cariz religioso está sempre bastante presente, com uma forte componente patrimonial e histórica”, o que "molda um pouco as mentalidades e a forma de pensar”, explica Fernando Ribeiro, chefe de divisão da Cultura e do Património de Lamego.
O projeto ATOS tem permitido "juntar mais gente, criar sinergias entre todos, tentar combater um pouco o isolamento das instituições”, relata. "Não é que se dessem mal, mas cada um tem o seu campo de trabalho, está no seu mundo e não está muito preocupado com o mundo do outro. Agora há algum cruzamento nesse sentido e percebe-se que quando estamos todos juntos temos mais capacidade, mais massa crítica, e por isso surgem melhores projetos”.
A chave, para Fernando Ribeiro, passa por tentar garantir a continuidade do caminho, para que o projeto fique "bem cimentado”: e, para isso, é preciso tempo. "Precisamos sempre de muito tempo para mudar a nossa forma de pensar, para combater as nossas resistências. É preciso não ter medo da mudança, daquilo que é novo, e encarar isso como uma coisa boa, pela experiência e pelo processo”.

Fernando Ribeiro, chefe de divisão da Cultura e do Património de Lamego | © Pedro Pina
Desaprender para aprender de novo
Depois de um primeiro ano "curto e intenso”, nas palavras de Joana Galhano e Gisela Borges, responsáveis pela administração e programação da Casa da Criatividade, em 2024 o ATOS permitiu "olhar para a rede artística do território e fortalecer as conexões com esses agentes, potenciando as valências de cada um”.
O município de São João da Madeira é relativamente pequeno – conta com cerca de 25 mil habitantes – mas, diariamente, este número duplica para 50 mil pessoas, com as que chegam de fora do concelho para estudar e trabalhar. Tem também uma grande variedade de associações que trabalham na cultura, mas "mais viradas para si mesmas”. "Este projeto foi extremamente importante para as pormos a conversar e perceberem de que forma é que podiam potenciar o seu próprio trabalho”, explica Gisela Borges.
As ações de capacitação e formação dinamizadas foram também muito procuradas, o que, para Gisela, reflete "a crescente consciência de que é sensível trabalhar com a comunidade”. "É importante distinguir o que é uma cocriação com a comunidade, o que é uma participação da comunidade num projeto artístico, o que é ouvir a comunidade para um projeto espontâneo… Há uma maior consciência para percebermos que é preciso cuidado e respeito com a comunidade para trabalhar com ela”.
Por outro lado, ambas referem que uma das mais-valias que um projeto como o ATOS traz é "o desinstitucionalizar face à comunidade”. A mediação de agentes externos, como o Teatro Nacional D. Maria II ou a associação Girassol Azul, permitiu "juntar toda a gente e conversar de outra forma, numa linha mais horizontal. É um desaprender para aprender de novo: em alguns momentos, como os fóruns, estamos só como Joana e Gisela, a tentar afastar-nos um bocadinho do papel da instituição para ouvir e estar com a comunidade”.

Joana Galhano e Gisela Borges, Casa da Criatividade, São João da Madeira | © Pedro Pina
Transformar a formação em ação
Ao município de Loulé, o ATOS só chegou em 2024. Dália Paulo, Diretora Municipal da Câmara de Loulé, sabia bem o que queria trabalhar: "a apropriação das pessoas da sua capacidade cívica de decisão e de implicação naquilo que é a vida cultural do concelho”. E descreve a experiência como "um ano de desafios”, mas também de "frescura”.
"A maior parte das pessoas acha que no Algarve não se passa nada, mas passa. A cultura verdadeiramente acontece fora dos meses de verão”, garante Dália. As principais dificuldades passam pela falta de colaboração entre os 16 municípios e também aquilo que refere como "uma falta de massa crítica”. "É uma utopia imaginar que os processos participativos nascem da comunidade sem que essa comunidade tenha tido previamente alguma capacitação. Isso só acontece com a educação, e o Plano Nacional das Artes está a trabalhar para isso em todo o território, para criar este amor, esta inquietação e esta necessidade da cultura”.
Para a responsável louletana, "trabalhar a cultura é trabalhar a dignidade e a justiça social”, e projetos como os que o ATOS traz contribuem para uma sociedade mais harmoniosa e plural, fazendo com que "as pessoas olhem para as comunidades que estão em crescendo no Algarve, como a nepalesa, e já não os vejam como outros, já queiram perceber quem são, qual é a sua cultura”.

Diluir as linhas entre artista e espetador
No seu balanço do segundo ano ATOS, a programadora do Teatro Baltazar Dias no Funchal (Madeira), Catarina Faria, reconhece que "o Teatro Nacional e a Fundação Calouste Gulbenkian adaptaram a proposta às necessidades que tínhamos no terreno e no território do Funchal”. Através de projetos de Residências Artísticas em Bairros Sociais, "os artistas tiveram a possibilidade de testar propostas no terreno, ouvir dificuldades, trazê-las para o espaço de debate e, a partir daí, apresentar outras soluções”. Além disso, permitiu que os artistas locais tivessem acesso a formações em projetos participativos, para as quais "teriam de se deslocar em massa para Lisboa, para o Porto, ou outra cidade no continente”.
Por outro lado, o diálogo que se criou vai além das questões culturais: "nas reuniões de coordenação com a Sociohabitafunchal (responsável pela gestão dos bairros), os artistas trazem do processo de escuta das pessoas os problemas dos bairros para juntarmos tudo à mesa e encontramos soluções conjuntas”. Por exemplo, "No último projeto, levantou-se a questão de não existir no bairro um espaço para sentar, para conversar. Cada bloco de moradores cuida de um canteiro ou jardim e havia um que não tinha dono. Então utilizaram esse canteiro extra para a construção de um espaço comum, com bancos, com um mural… As pessoas sentiram-se ouvidas, participaram, deram ideias, plantaram à volta. Acaba por ser um processo muito colaborativo e horizontal”.
No futuro, além de querer envolver mais as comunidades das zonas altas do Funchal, Catarina acredita que "aquele lugar de espectador como recetáculo de informação, que se senta e assiste ao espetáculo, vai tender a desaparecer, e esta linha entre os artistas profissionais e não profissionais, ou não artistas, vai ser cada vez mais diluída”. Porque, acrescenta, "quando as pessoas se sentem envolvidas, ou, por exemplo, participam como atores num espetáculo de teatro, a relação que criam com o teatro é muito mais profunda do que ao estar sentado numa plateia. A cultura, na verdade, é de todos, e todos têm de ter representação”.

Inaugurado em 2023 e inserido na iniciativa da Odisseia Nacional, o programa ATOS é uma iniciativa do Teatro Nacional D. Maria II e da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2025, mantém as parcerias com as Câmaras Municipais de Lamego, Loulé, Funchal e São João da Madeira, e também com instituições de Évora e Ponta Delgada, para continuar o trabalho de enraizamento dos processos participativos no tecido cultural dos territórios e fortalecer a democracia cultural.